sábado, 14 de janeiro de 2012

Reflexão: Conto "O Pessegueiro"

O conto a seguir foi um trabalho que fiz para a pós graduação e pretendo futuramente transformá-lo em vídeo. Já elaborei roteiro e storyboard de um curta a partir dele, no qual tento capturar sua essência e não simplesmente recontá-lo em imagens. Exatamente por isso resolvi postá-lo, para que vocês possam acompanhar meu processo de desenvolvimento. 



O Pessegueiro

Era uma menina pálida como arroz cozido, de longos cabelos castanhos que por pouco não enrolavam no calcanhar. Com olhos grandes e vivos como sementes de pêssego que vezes escondiam-se nas profundas olheiras quando ela cismava em piscar. Na boca nenhum sorriso e de tão séria parecia que engoliu o choro. Carregava um lampião lacrimoso que pouco ajudava e apertava a alça com tanta força que a mão passara a reclamar.

Estava sozinha, sentada num banco que ia de um lado ao outro dum barquinho feito de resto de madeira. O barquinho seguia claudicante num rio que não tinha margem, como se não quisesse ser empurrado pelo espelho de águas brancas, que brilhava e ofuscava, mais que o balanço do lampião.

O rio, que mais parecia mar, margem até tinha, só que era pra lá do horizonte. E se duma margem brilhavam pontinhos de luz azulada como se fossem vagalumes esperando na fila, da outra nada brilhava. E era pra lá que o barquinho estava levando a menina.

E ele seguiu, e seguiu mais e mais até bater suave na margem que viera de lá do horizonte. Numa terra sem cor e tão arenosa que era difícil de andar. A menina pulou para fora do barquinho tomando cuidado para não largar o lampião. Os pés se afundaram na areia e seu vestido branco, que havia prendido e rasgado num bendito prego pra fora da madeira, escorregou pra água e no banho escureceu. Do branco tingiu-se em púrpura tal como mágica. E ela de tão distraída não percebeu. 

Já o barquinho, sorrateiro, foi embora pra margem dos vagalumes.

A menina, perdida e curiosa, andava com o lampião pendurado na frente enquanto entrava numa cortina preta como boca de caverna. A luz branca do rio, que vinha de cima e de baixo, tinha ido embora fazia tempo. E o medo, que não estava longe, nem perto, forte e nem fraco, entrou pelo ouvido e subiu pela cabeça, e com ele o calafrio que, arruaceiro como era, resolveu descer até a barriga. E lá encontrou a fome, encolhida e chorosa num dos cantos, aflita no vazio da entranha. Já o medo, crente como sempre, quis porque quis expulsar a curiosidade e quase conseguiu. Mas a curiosidade, sabida de que sem ela as pernas não andam, empurrou-o pra bem fundo, pra lá onde as idéias são confusas e os pensamentos são perdidos. Então a menina apertou ainda mais o coitado do lampião e, com frio na barriga e o medo lá no fundo, seguiu a curiosidade.

De tanto andar por aquela terra arenosa e cheia de pedras avistou, de bem longe, uma luz que de tão borrada não era redonda. E a esperança, antes escondida, resolveu lhe acompanhar.

De areia e pedra a terra cobriu-se de grama verde e macia como um travesseiro. E com o suave caminhar veio o bom humor trazendo um sorriso limpo e orgulhoso. A menina, então, correu tudo que suas forças agüentaram. E chegou, enfim, ao jardim da luz borrada, sem flores e sem praça, do bosque, sem pássaros e esquilos. Duma floresta de única árvore e duma árvore de único fruto. E a menina hipnotizada, enevoada pela luz, contemplou o pessegueiro.

O tempo, sempre mal educado, chegou e passou como vento que assopra as folhas. Sem dizer uma palavra, sem fazer um aconchego. E a menina continuou a admirar com os olhos que, sem piscar, brilhavam como vagalumes no escuro. A árvore permanecia ali inerte deixando-se contemplar com seu tronco que serpenteava enquanto subia até os galhos, e que se espalhavam por outros galhos mais finos e contorcidos, secos como o deserto. Escura, rugosa e áspera como senhora velha, mas que pulsava em suas veias uma energia como criança arteira, forte e purificante como chuva do verão ou como o sal do mar e das lágrimas. A menina de olhos abertos, e sem piscar, enxergava um pessegueiro com todas as suas flores de primavera, abertas e rosadas, apontadas pra lá e pra cá por todos os fios de madeira. 

E assim permaneceu, atraída, investigando o pessegueiro, por todo o tempo que pudera, sob o vento que chegava e passava levantando a poeira da terra. Esquecendo o quanto estava faminta.

Como a luz borrada uma melodia limpa e distante pulsou das veias do pessegueiro. Espalhou-se com o vento e levou a menina para longe. Sentada de pernas enroscadas e segurando apertado o lampião, sua mente navegava pelos mais profundos pensamentos, não só os perdidos, mas os novos, que se espalhavam em outros e mais outros. 

O pessegueiro estendeu suas raízes pelo chão macio e se enrolou pelas pernas da menina ainda perdida em seus pensamentos. E continuou a enrolar abraçando todo seu corpo como um casulo de lagarta. E quanto mais ela se perdia naquele mundo tão distante, mais o pessegueiro se emaranhava. E menos se lembrava da fome que sentia.    

E apenas o rosto e os braços permaneceram livres. 

Então o único fruto, da única árvore, amadureceu e caiu logo a sua frente. Um pêssego vermelho, sedoso e macio, perfeito como nenhum outro, trouxe a menina de tão distante. E ela, com o lampião em suas mãos e o aroma do pêssego no nariz, lembrou, num desespero, da fome que lhe consumia. Largou o lampião pela grama e esforçou-se, mesma presa pelas raízes, para alcançar o saboroso fruto. E da felicidade de poder saciar sua fome, veio à tristeza. Como comer algo tão belo? Tão perfeito? E um sentimento amargo de culpa a consumiu.

A menina tentou voltar aos seus pensamentos pra esquecer a fome. Seu corpo contorcia-se de dor pelo vazio em seu estômago. E a mocinha, com muito pesar, comeu o fruto presenteado pelo pessegueiro. E do fruto sobrou só a semente. Como era saboroso. 

A suave melodia que pulsava das artérias da árvore transformou-se num ruído sólido e desesperado como tempestade de oceano. Os dedos finos e brancos ganharam a textura e a rudeza da madeira. Os fios do cabelo eram agora os galhos da árvore, os olhos perderam o preto, as pernas se misturaram às raízes e da pele emergiu artérias que não mais fluíam o sangue, mas a seiva. 

De menina a um pessegueiro.
 
Suas raízes, vindas dos dedos do pé, e seus galhos, como fios de cabelos, emaranharam-se com os do pessegueiro numa rede que ainda pulsava viva os ruídos. O pêssego que havia devorado permanecera intacto, imortal como o divino, preso lá em cima nos galhos.
 
E se engana quem pensa que o bosque, agora, tinha dois pessegueiros. O bosque era de um infinito sem margem. De uma névoa dissimulada que escondia as árvores que se enfileiravam pelo horizonte junto da menina. Todos conectados por suas raízes e seus galhos de cabelo. Embalados por um ruído que dispersava por todas as veias e artérias, e por pensamentos que se misturavam como seiva pelos troncos. Os pessegueiros eram de um só bosque, de uma só árvore com um só fruto.     

Do lampião faltou a luz. E do corpo restou a alma, presa sob a casca da madeira, mas livre em seu imaginário.


4 comentários:

  1. Muito bom cara!
    O texto já mostra o potencial de interpretações que se pode ter. Você vai mostrar mais coisas desse projeto? (doido para ver o Storyboard!)
    Mais uma vez parabéns pelo trabalho.
    abraço

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  2. Então, eu já tenho um material, mas é apenas uma adaptação do conto em um curta e com pessoas atuando (proposta do trabalho).
    Pretendo postar esse material, mas irei fazer um roteiro novo - que também postarei-, pois irei fazer uma animação 3D (aí sim mais próximo do conto) para o projeto final da pós.

    abraço!

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  3. Gostei muito do que li no seu trabalho! A base textual que você postou é cativante e cheia de tensão e movimento! Achei os argumentos da fome e da culpa muito bem citados, apesar desse conflito ser bem comum nos discursos ambientais contemporâneos. O que me impressionou na narrativa foram as possibilidades de tensões que ela pode provocar, dá uma vontade incrível de orientar a escolha da menina desde a sua decisão em ir para a margem do desconhecido. por que não dizer uma angústia por não ser o vento no barco, a correnteza ou ruído do bosque ou qualquer elemento que possa mudar a trajetória e levá-la ao outro lado da margem. mas ela precisa seguir sozinha pois o vazio não é só do estômago, vamos até percebendo que o vazio é também do espectador. gostei também da possibilidade de brincar com a idéia de o pêssego ser o tesouro da busca da menina, que não se sabe de onde veio, e que acabou por consumí-la de alguma forma, mas libertando-a ao mesmo tempo! É cara você terá muito trabalho para tirar e organizar tantas questões dessa narrativa em um trabalho cinematográfico, mas confesso que será, depois de pronto, de imensa qualidade! parabéns!

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  4. Po Wesley, agradeço MUITO seu comentário!
    Tu não sabe como fico animado com seu elogio, pois sei que voce tem muita cultura e mais do que ninguém sempre buscou ler e se desenvolver intelectualmente!

    Obrigado mesmo pelo texto e suas observações foram bem no alvo!
    Grande abraço!

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